Bebidas Alcoólicas e Coração




Por Dr. João Breda
Com poucas excepções, os dados epidemiológicos de pelo menos 20 anos, na América do Norte, Europa, Ásia e Australasia têm vindo a demonstrar uma redução de incidência de Doença Coronária de 20 a 40% entre os consumidores de bebidas alcoólicas comparados com os não consumidores. Os consumidores moderados exibem níveis mais baixos de mortalidade por Doença Coronária do que os abstinentes e os consumidores excessivos de álcool.

A evidência mais persuasiva dos possíveis efeitos protectores do álcool face à Doença Coronária é, decorrente de estudos prospectivos, em que os participantes fornecem informação sobre os seus hábitos alimentares e de práticas ligadas à saúde antes do aparecimento da doença. A história de saúde dos participantes é depois estudada ao longo de uma série de entrevistas de follow-up. Os estudos prospectivos de larga escala confirmam uma associação entre consumo moderado de álcool e menor risco de Doença Coronária. Os estudos mais importantes totalizam mais de um milhão de homens e mulheres de diferentes etnias. A média de período de seguimento foi de cerca de 11 anos, sendo o mais longo de 24 anos.

Os 2 maiores estudos mundiais foram conduzidos pela American Cancer Society, um incluindo 276 800 homens e outro com 490 000 homens e mulheres. Contudo num estudo prospectivo recente que seguia os participantes durante 21 anos, na Escócia, não foi encontrada associação entre o consumo moderado de bebidas alcoólicas e menor risco de Doença Coronária em 6000 homens trabalhadores, com idades compreendidas entre 35 e 64 anos.

O papel do álcool será causal ou acidental?

Uma associação entre consumo moderado de álcool e menor risco de Doença Coronária (DC) não significa necessariamente que o álcool por si só seja o responsável pelo menor risco. Por exemplo, uma revisão de estudos populacionais indicou que a maior mortalidade nos indivíduos não consumidores de álcool poderia ser atribuída a "traços" partilhados entre os abstinentes que não fosse apenas o consumo de álcool. Outro aspecto importante é que poderão existir muitos indivíduos que deixaram de beber por razões de saúde e que "pioram" o risco relativo deste grupo. No entanto, alguns estudos indicam que estes factos terão pouca importância.

Apesar de tudo, alguns comportamentos ligados à saúde que se correlacionam fortemente com os níveis de consumo de álcool podem ser responsáveis por muito da associação entre álcool e menor risco de Doença Coronária. Entre os factores mais estudados encontra-se a alimentação e a actividade física. Poucos são os estudos que têm efectuado ajustamentos para os níveis de actividade física, apesar da evidência de que o exercício protege contra a Doença Coronária. Numa revisão extensa e compreensiva de vários estudos publicados concluiu-se que o risco de DC era proporcionalmente mais baixo para maior nível de exercício. Os estudos referidos avaliavam factores como o grau de exigência física do emprego; frequência de participação em desportos não especificados; vigor e intensidade estimada das actividades, cálculos da energia despendida e teste de forma e aptidão cardiovascular.

Resultados de um estudo (inquérito) comunitário indicam que a prevalência de exercício físico regular era maior entre os consumidores moderados e excessivos do que nos não consumidores. Exercício regular era entendido como qualquer forma de actividade física não ocupacional praticada pelo menos três vezes por semana. Assim se reconhece que a relação da actividade física e a DC precisa de ser melhor estudada.

A alimentação é um dos factores com maior influência na mortalidade por DC, sobretudo entre os 50 e os 70 anos. Comparações internacionais, dados laboratoriais e estudos prospectivos sugerem que uma alimentação rica em gorduras saturadas e colesterol aumenta o risco de DC. Dados epidemiológicos sugerem que consumidores moderados de álcool poderiam consumir menos gordura total e menos colesterol do que consumidores excessivos e abstinentes, justificando potencialmente a proporção de redução do risco de DC associada com o álcool. No entanto, resultados de estudos prospectivos indicam que a associação do álcool com menor risco de DC é independente de factores nutricionais.

O papel de diferentes tipos de bebida
Alguns estudos referem que o vinho, sobretudo vinho tinto, seria responsável por maior protecção cardiovascular do que as outras bebidas alcoólicas para níveis equivalentes de consumo. Estes resultados sugerem que a associação entre o consumo de álcool e o risco de DC poderia resultar mais dos efeitos de determinados constituintes do vinho do que do álcool ou exclusivamente do álcool.

Um estudo comparativo entre 21 países desenvolvidos concluiu que o consumo de vinho estava mais fortemente correlacionado com menor risco de DC do que o consumo de outras bebidas alcoólicas. Por outro lado, estudos prospectivos de larga escala não foram capazes de confirmar esta hipótese. O vinho tinto tem de facto antioxidantes - flavonóides, que poderão actuar com alguma plausibilidade biológica sobre a progressão da DC, embora falte confirmar em absoluto esta hipótese nos humanos. Por outro lado, a evidência também sugere que a preferência por vinho em detrimento de outras bebidas alcoólicas está associado com um estilo-de-vida mais saudável, nomeadamente por tendência a não fumar ou fumar menos e a ter uma alimentação mais saudável do que, por exemplo, os indivíduos que preferem bebidas destiladas ou cerveja.

Os investigadores têm procurado várias explicações para o facto de o álcool poder reduzir o risco de DC. Por exemplo, o álcool pode proteger o coração prevenindo a constrição das artérias coronárias, inibindo a formação de coágulos e promovendo a recuperação após ataque cardíaco. A maioria da evidência que suporta estes mecanismos possíveis resulta de estudos experimentais em animais ou células isoladas da parede das artérias e criadas em laboratório. Estudos clínicos controlados são ainda necessários para confirmar que os efeitos observados nesses estudos possam alterar o desenvolvimento e progressão de DC em humanos.

Resultados de investigação laboratorial indicam que a administração de álcool poderia prevenir a redução de calibre das artérias. Este efeito poderia resultar das mudanças nas concentrações sanguíneas de certas substâncias do grupo das gorduras que influenciam a deposição de colesterol na parede das artérias coronárias. Todavia, estudos em humanos e animais indicam que menos de metade da redução do risco de DC ligada ao álcool pode ser explicado por níveis sanguíneos alterados destas substâncias gordas. Assim, os investigadores continuam à procura de explicações adicionais para os aparentes efeitos protectores do álcool.

O álcool pode ajudar a prevenir a formação de coágulos nas artérias cujo calibre já se encontra reduzido. A formação de coágulos ocorre quase sempre como uma resposta à libertação de certos químicos lançados no sangue, a partir da parede arterial. A exposição destas células ao álcool em laboratório suprime a produção de substâncias que promovem a coagulação e estimulam a produção e actividade de substâncias que reduzem a coagulação. Além disto, análises de amostras sanguíneas recolhidas em voluntários humanos indicam que o consumo de álcool aumenta os níveis sanguíneos de factores anticoagulantes e diminui a adesividade de células sanguíneas especializadas na sua função para formar coágulos (plaquetas).

Estudos de investigação laboratorial têm sugerido que o álcool poderia proteger contra a lesão por reperfusão, um tipo de lesão causada por restauração súbita da perfusão da corrente sanguínea para o músculo cardíaco, entretanto enfraquecido por uma prévia privação de oxigénio. O consumo excessivo de álcool por humanos pode causar ritmo cardíaco irregular e rápido o que poderia limitar a capacidade de o coração bombear, que são duas causas reconhecidas de morte no seguimento de ataque cardíaco.

O álcool pode interferir negativamente com medicamentos prescritos para tratar doenças do foro cardíaco. Assim, embora possa proteger contra a DC, consumir álcool, sobretudo se excessivamente, pode aumentar o risco de efeitos de saúde adversos após ataque cardíaco.

Alcoolização e Sistema Cardiovascular

Numerosos estudos de investigação têm demonstrado que o álcool pode modificar o funcionamento do sistema cardiovascular. O álcool pode aumentar de forma modesta a pressão arterial. Num estudo realizado em mais de 80 000 homens e mulheres, uma elevação da tensão arterial e uma prevalência de hipertensão mais importante foram observados em consumidores de mais de três bebidas alcoólicas por dia e fosse qual fosse o sexo, independentemente da idade, do peso, do consumo de tabaco, do consumo de café e do nível social. Um estudo francês muito recente demonstrou que a prevalência de hipertensão arterial entre os consumidores de mais de seis copos de bebidas alcoólicas por dia é o dobro da prevalência entre os não consumidores (12% versus 24%).

O álcool favorece, mesmo em doses baixas, o aparecimento de problemas do ritmo cardíaco. A maior parte das vezes, estes problemas são benignos, aparecendo na ocasião da ingestão aguda e regressando espontaneamente à normalidade após a diminuição da taxa de alcoolémia. A probabilidade de apresentar um problema do ritmo cardíaco é significativamente mais elevada entre os consumidores de mais de 6 copos por dia comparativamente aos sujeitos abstinentes, independentemente do sexo, idade, etnia, consumo de tabaco. Alguns problemas do ritmo podem ser graves, até mortais, e muitos estudos epidemiológicos têm demonstrado uma incidência de morte súbita mais elevada entre os alcoólicos.

Numerosos estudos epidemiológicos e outros são em favor de um efeito cardioprotector de um consumo moderado de álcool. O risco de morte por doença coronária parece ser mais elevado entre os abstinentes e os grandes consumidores (curva em J). A origem parece estar ligada sobretudo a um aumento da síntese de HDL-colesterol induzidas pelo consumo moderado de bebidas alcoólicas. Também têm sido evocados mecanismos ligados aos efeitos antioxidantes dos flavonóides do vinho sobretudo vinho tinto jovem.

Álcool e Cardiomiopatia

A cardiomiopatia é muito comum em consumidores crónicos de álcool. Pode manifestar-se através de cardi omegalia (aumento anormal do volume do coração). Os doentes podem sofrer de dor no peito, palpitações, tosse durante a noite, fadiga anormal e por vezes dificuldades de respiração. Muitos estudos demonstraram que os consumidores crónicos de álcool (consumo de 60 g/dia - 6 copos - de bebida alcoólica durante 10 a 25 anos de consumo excessivo regular) frequentemente queixam-se de sofrimento cardíaco, caracterizado por dor de angina, fadiga, tosse e dificuldade em respirar. Isto é sugestivo da existência de uma relação estreita entre a duração da intoxicação alcoólica e o desenvolvimento de lesões cardíacas. A abstinência é normalmente acompanhada de regressão dos sintomas.

Álcool e hipertensão arterial

O consumo crónico de etanol (álcool etílico) pode conduzir a elevação da pressão arterial. O álcool é a terceira causa mais importante de hipertensão arterial, logo a seguir à idade e ao peso e à frente do tabaco e do estilos-de-vida. Cerca de 50% dos consumidores excessivos têm hipertensão arterial, que pode estar associada a outras complicações, nomeadamente problemas do ritmo cardíaco e angina. A relação entre o consumo crónico e a elevação da tensão arterial torna-se mais óbvia acima dos 40 anos de idade. Esta relação é independente do peso do indivíduo e do seu consumo de tabaco. A Hipertensão arterial reduz-se durante a abstinência, mas aumenta se houver uma recaída.

Álcool e problemas do ritmo cardíaco

O consumo crónico de álcool pode conduzir a problemas do ritmo cardíaco (taquicardia, palpitações). Na maioria dos casos, o ritmo cardíaco normal pode ser espontaneamente retomado após 24 horas. Os problemas do ritmo cardíaco como a taquicardia e palpitações podem ser identificados em consumidores excessivos de álcool:
- Como resultado de cardiomiopatia alcoólica;
- Após um grande consumo de bebidas alcoólicas;
- Por vezes durante a abstinência alcoólica.

Os problemas do ritmo cardíaco também podem ser identificados em indivíduos que não são consumidores excessivos de álcool e que não têm problemas de coração mas que podem ter ocasiões de ingestão massiva de álcool.

Efeito do consumo moderado de álcool no sistema cardiovascular

O consumo moderado de álcool (10 a 30 g/dia - 1 a 3 copos de vinho por dia) pode ter um efeito protector sobre o sistema cardiovascular. Este efeito desaparece nos consumidores excessivos de bebidas alcoólicas ou naqueles que têm episódios de embriaguezes ou de consumo raros mas elevados. Todavia o consumo moderado de álcool está associado com maior mortalidade por hemorragia cerebral e hipertensão.

O consumo moderado de álcool tem um efeito benéfico sobre o ateroma (estreitamento das paredes arteriais por formação de placas que contêm gorduras e produtos sanguíneos) por redução do risco de insuficiência coronária (angina) e enfarte de miocárdio (ataque cardíaco) em indivíduos que não são doentes coronários. Muitos estudos demonstram uma baixa incidência de insuficiência coronária (angina) em consumidores moderados de álcool.

Os mecanismos que parecem explicar este efeito protector do consumo moderado de álcool são baseados na:
- Mortalidade cardiovascular é maior em pessoas abstinentes do que em consumidores moderados;
- Tendência para reduzida trombose e ateroma vascular.

Riscos e benefícios

Os aparentes benefícios do consumo moderado de álcool na DC são apagados pelo consumo excessivo por aumento do risco de morte por outros tipos de doenças do coração; cancro; cirrose hepática e trauma inclusive resultante de acidentes de viação. Por exemplo, o consumo moderado em pessoas idosas poderá baixar a DC, mas aumentando o risco para outras condições de doença ligada ao álcool, como interacções adversas álcool-medicamentos, trauma incluindo queda e acidentes de automóvel ou ainda Doença Cérebro-Vascular Hemorrágica.
Esta ligação parece estar bem estabelecida, mas a causalidade ainda não está inequivocamente estabelecida. Neste contexto, recomendar à população o consumo regular e moderado de álcool deve ser feito tendo em consideração alguns riscos:
- Não cair na tentação da utilização das bebidas alcoólicas como se de um medicamento se tratasse. A mensagem dos efeitos hipotéticos efeitos positivos pode levar a esquecer a importante noção de dose, relativamente à qual de facto não existe consenso absoluto. Deve dizer-se que nos estudos que encontram um efeito protector a dose de álcool referida vai desde 5/10 g a mais de 60 g por dia. Convém notar que a partir dos 20 g por dia já poderão existir problemas graves de saúde associados ao álcool como sejam alguns problemas hepáticos, sobretudo na mulher e acima dos 30 g por dia, a mortalidade por cancro, doença neuropsiquiatrica e acidentes aumentam e compensam, acima dos 45 g os benefícios existentes relativamente à morte por doença coronária. O consumo de álcool não reduz, antes pelo contrário, a mortalidade global de uma população;
- O segundo risco grave tem que ver com a capacidade aditiva do produto, que se exercerá mais facilmente no caso de existirem factores de vulnerabilidade e susceptibilidade individual, não previsíveis e que poderão favorecer o aparecimento de dependência ainda que para doses relativamente baixas.

Antes que se esclareçam todas as dúvidas a prudência recomenda que:
- Indivíduos que não consomem álcool não devem ser encorajados a beber com base em razões de saúde, porque a base para os possíveis benefícios de saúde ainda não está totalmente esclarecida e subsistem dúvidas se resultará exclusivamente do álcool.
- Indivíduos que escolhem consumir devem fazê-lo moderadamente (1 a 3 bebidas por dia) caso não tenham outras razões de saúde que desaconselhem a ingestão;
- Indivíduos que consomem excessivamente deveriam limitar os seus consumos;
- Existem muitos factores de protecção das doenças cardiovasculares para quem não bebe, como não fumar ou fumar menos, aumentar o grau de actividade física e procurar ter uma alimentação mais saudável...

Este texto faz parte de uma edição da Fundação Portuguesa de Cardiologia. www.fpc.pt

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