O MUNDO FANTÁSTICO DOS COGUMELOS


Isabel Nunes Governo

Dito de forma simples, os cogumelos são elementos do Reino Vegetal desprovidos de clorofila. Como os bolores, as cravagens, as leveduras, etc, pertencem ao muito vasto agrupamento dos fungos.
Os cogumelos apresentam-se, por sua vez, em numerosas variedades e classes. A grande maioria das espécies existentes, cerca de 80%, não são comestíveis pelo homem. Apenas umas 500 espécies são consideradas como tal, e destas, cerca de 30 apresentam, ainda assim, algum grau de toxicidade.
Ao contrário das plantas verdes, estes vegetais não podem alimentar-se de substâncias orgânicas obtidas com a ajuda da clorofila a partir da água, dos sais inorgânicos do solo e do ácido carbónico do ar. Têm, pois, necessidade de produtos já processados, como os que se encontram em matérias em decomposição; ou, então, de parasitar outros organismos vivos. Crescem, abundantemente 1, no húmus dos bosques, aproveitando a fase putrefacta da incessante renovação da vida animal e vegetal (os saprófitas), ou nutrem-se no perímetro das raízes de árvores ou nos seus troncos (os parasitas). Os primeiros segregam ricas enzimas para decompor hidratos de carbono complexos e proteínas das fontes alimentares, absorvendo depois as matérias solúveis.
A maior parte dos grandes e vistosos fungos – agáricos, cogumelos de chapéu, licoperdons e poliporos – está agrupada na classe dos basidiomicetos, da qual existem mais de quinze mil espécies classificadas. Os basidiomicetos têm grande importância ecológica e industrial nas suas associações micorrízicas com as árvores das florestas e muitas outras plantas (uma micorriza é uma associação simbiótica entre as hifas dos fungos e as raízes de plantas superiores). O fungo micorrízico aumenta a solubilidade dos minerais do solo e melhora a absorção de azoto, potássio e fósforo por parte da planta hospedeira, protege as raízes desta dos agentes patogénicos e produz hormonas de crescimento vegetal. Em troca, o fungo recebe um abastecimento de hidratos de carbono procedentes da actividade fotossintética da hospedeira. É evidente a riqueza deste equilíbrio florestal e a sua importância ecológica.
Um país micófobo
Em Portugal existem cerca de 200 espécies comestíveis de cogumelos silvestres. Contam-se entre elas: os míscaros amarelos ou sanchas amarelas (Tricholoma equestre), típicos das Beiras; os míscaros roxos (Tricholoma portentosum); os tortulhos da terra ou cogumelos de chapéu (Psaliotta campestris ou arvensis); as cilarcas ou silercas (Amanita ponderosa ou ovoidea), mais frequentes no Centro e no Sul; os frades, lepiotas, míscaros da terra ou chouteiros (Lepiota procera), disseminados um pouco por todo o país; os cogumelos de leite ou pandorcas (Lactarius deliciosus e volemus), frequentes em todo o Norte; os orelhas-de-Judas (Auricularia auricula-Judae), também nortenhos; os míscaros de refegos (Cantharellus Friessii); os cornos de cheiro (Cratharellus cornucopioides); os línguas-de-boi ou tortulhos vermelhos (fistulina hepatica); os boletos doces ou pães-de-ló (Boletus edulis); os febras roxas (Clavaria amethysta); os febras brancas ou carvalheiras (Clavaria flava); os morquelas (Morchella esculenta, costata, etc), o mais caro e o mais requintado dos cogumelos, se não se considerarem as trufas; os amanitas dos Césares (Amanita caesarea); os foliotas (Pholiota mutabilis), de excelente sabor; os vulgares “champignons” (Agaricus bisporus); várias espécies de rússulas (Russula adusta, amoena, atro-purpurea, aurata, vesca, etc) … – um nunca acabar de espécies, muitas delas em vias de extinção em outros países da Comunidade, por mais cedo do que nós se terem dado conta da enorme riqueza gastronómica e patrimonial que eles constituem.
De facto, podemos orgulhar-nos de acolher nos nossos solos os melhores entre os melhores cogumelos do ponto de vista gastronómico. Eles são internacionalmente cotados como de grande qualidade, uma vez que crescem num país pouco poluído e que quase não sofre com as chuvas ácidas. Aqui ainda temos vastas áreas de pinhal, de eucalipto, de florestas mediterrânicas e de montados de vários tipos de Quercus, onde os cogumelos proliferam e beneficiam de condições particulares e excepcionais.
Composição e valor nutricional
Os cogumelos, em valores médios, são constituídos por 80 a 90% de água, 2 a 13% de glícidos, 0,5 a 1,5% de elementos/sais minerais (neles se encontrando azoto, cloro, sódio, potássio, fósforo, magnésio, cálcio, ferro, zinco, cobre, manganésio, iodo, etc), 0,5 a 7% de proteínas, 0,4 a 2% de lípidos, numerosos aminoácidos, e vitaminas A, B1, B2, B3 (PP), B5, B6, C, provitamina D, E. O seu valor nutricional e, principalmente, o seu aproveitamento são, porém, algo restritos devido ao elevado teor de água. Tira-se melhor proveito do cogumelo em pó, isto é, o cogumelo seco e moído, de sabor mais apurado – a “especiaria” – e muito recomendável nos regimes sem sal.
Os cogumelos, juntamente com a soja e outras leguminosas, os queijos de cabra, certas oleaginosas e cereais, são dos alimentos mais ricos em prótidos. Não sendo as proteínas vegetais pré-digeridas, como o são as proteínas animais, em caso de passagem a uma alimentação vegetariana é prudente assegurar que o organismo esteja apto a assimilá-las e a aproveitá-las integralmente, procedendo a uma reeducação digestiva durante 6 meses ou de acordo com o estado do indivíduo (a fim de evitar carências proteicas).
Nota Luís Guerreiro: Em relação à pré-digestão das proteínas animais tenho duvidas já que não são comidas cruas e as enzimas são destruídas no processamento a mais de 45º C.As proteínas vegetais cruas são naturalmente ricas em enzimas que ajudam no processo de digestão.
Selecção e recolha
Onde há vida, há fungos. Desde o míldio ao Penicilium (que produz a penicilina), às leveduras do vinho e da cerveja, e às micoses dos nossos pés, todos são fungos. E há aqueles venenosos e, entre eles, os fatais. Contudo, na Natureza tudo tem o seu lugar, a sua razão de ser e a sua utilidade – até mesmo “os venenos”. É a partir deles que a Medicina tem produzido as armas mais potentes contra as mais terríveis doenças, os fármacos mais tenazmente defensores da vida. É o caso dos antibióticos, elaborados a partir de bolores, e é o caso de alguns típicos cogumelos, como por exemplo o “Trompeta dos mortos” (Cratarellus cornucopioides), com substâncias anti-cancerígenas, o Calocybegambosa, com valor anti-diabético, o Shii-ta-ker (cogumelo japonês), imunopotenciador, etc. E certamente muito, muito mais, os fungos ainda têm para mostrar e para dar…
Do seu mundo de “fadas” e “duendes”, os cogumelos saltam para a nossa ribalta e vêm colorir-nos e povoar-nos os campos, as nossas vidas, e as nossas mesas. Há-os de todas as cores e de todas as formas: bojudas, estreladas, lobuladas, em forma de falo, de sistema intestinal, de trompeta, de chapéu de chuva, de língua ou mísula, etc. A forma de chapéu de chuva é a mais comum, com a face inferior da “copa” forrada de lâminas, de agulhas, de pregas ou de poros. Os cogumelos com esta última característica (entre os quais se encontra a família das Boletáceas) são, regra geral, os mais inofensivos e os mais apreciados, sendo facilmente reconhecíveis. Entre os de copa forrada com lâminas estão os famosos míscaros (Tricholomas equestre e portentosum), igualmente apreciados, mas também o género dos Amanitas, quase todos letais.
Quanto às cores, diz o povo que “há que ter cuidado com os de cores gritantes, aguerridas”: os escarlates, os vermelho-fogosos, os verde-biliosos, os verde-pardos, os cinza de fumo, etc, bem como certos padrões listrados, manchados, e outros.
Relativamente à textura, em traços gerais, quanto mais apertada e compacta for a polpa do cogumelo, menos suspeito se torna. Quanto mais branca, rija, seca, leve, menos há que recear. Os bons cogumelos costumam nascer em locais soalheiros e descobertos, ao passo que os venenosos preferem a sombra e bem debaixo das árvores. Devem ser desprezados os muito velhos, de cor alterada, os nascidos em lugares sombrios, húmidos e baixos; os que vivem em troncos velhos ou sobre substâncias orgânicas pútridas; os que os insectos abandonam logo que lhes tocam; os que enegrecem a cebola com que são preparados. Todos os cogumelos húmidos ou viscosos e que mudam de cor ao serem cortados, de aroma forte, cores agressivas, merecem cuidadosa reserva pelos não entendidos, assim como os de haste bolbosa e mole, ou com fragmentos de pele colados na superfície, ou ainda os que crescem rapidamente e logo definham. Os bons cogumelos de mesa secam-se e conservam-se bem; os outros não aguentam a conservação.
Por exemplo, os míscaros brancos (Tricholoma portentosum) podem, com facilidade, ser confundindos com os Amanita phalloides, ambos susceptíveis de apresentar algumas variações de cor no “chapéu”, que podem originar a confusão. Ambos possuem lâminas e pé branco e, embora o A. phalloides deva apresentar um anel no pé, este pode por vezes não existir. Curiosamente, se numa recolha de míscaros brancos for, por engano, incluído um único Amanita Phalloides, este irá contaminar todos os outros, tornando-os tão venenosos quanto ele.
O mesmo tipo de intoxicação é provocado com um Lepiota da família dos “frades”, uma das principais variedades consumidas em Portugal. Também o tortulho beirão e alentejano (Amanita ponderosa) tem um sósia muito perigoso, o Amanita verna, que partilha a mesma época de frutificação e os mesmos terrenos.
Há, pois, que ter muita atenção na selecção e recolha. Na dúvida… mais vale não colher. O resto – as ousadias –, ficam para os verdadeiros entendidos e conhecedores.
Quando surge uma intoxicação por cogumelos…
Os sinais de intoxicação começam por náuseas, suores frios, tonturas, dores de estômago, cólicas intestinais e diarreia. Logo após surgem os sintomas nervosos: excitação, agitação, delírio, vertigens e visão turva, miose. Nos casos muito graves segue-se  um período de depressão, que leva rapidamente ao colapso cardíaco, podendo sobrevir a morte. Nos casos não letais, não obstante, a convalescença é demorada. O tratamento, regra geral, consiste no esvaziamento do aparelho digestivo, administração de atropina, que é o antídoto da muscarina (alcalóide dos cogumelos, principal responsável pela intoxicação), cardiotónicos, diuréticos, purificadores/regeneradores hepáticos, etc.
Os cogumelos e a simbologia oculta
Ocultamente, os cogumelos são depuradores do seu habitat e como que barómetros que indicam a carga astralizante dos locais onde nascem. Eles absorvem os humores ambientais e, de facto, há que ter imensa precaução com os que nascem em pântanos e locais sombrios 2.
São um símbolo eleito pelos alquimistas do passado, figurativo do andrógino, do casamento do mercúrio e do enxofre (os dois princípios reinantes na Natureza, o princípio feminino, figurado pelo “escudo”, ou chapéu fúngico, e o princípio masculino, figurado pela “lança”, ou talo fúngico). Esta sizígia depura-se dos seus lastros terrenos e venenosos e encontra o Equilíbrio nas “Bodas Alquímicas” – a fusão numa única e incorrupta Natureza.
Os cogumelos são ricos em azoto, o que significa que neles predomina a matéria química mais afim com o plasma vital da Natureza 3 (o Akasha). Por outro lado, contêm, regra geral, diversos alcalóides. E os alcalóides funcionam como portas de contacto com os planos mais subtis – no caso, em particular, com o plano astral. Quando esses alcalóides têm grande toxicidade, catapultam quem os ingere para zonas do plano astral intensamente turbulentas e caóticas, produzindo terríficas alucinações… Certos feiticeiros em África e na Amazónia (nomeadamente 4), utilizam-nos, de forma controlada, para fins místicos, para estados alterados de consciência.
Por outro lado, é curioso observar que um cogumelo irrompe da terra, qual o faz uma deflagração nuclear. A forma que tende a assumir não é fruto do acaso: demarca uma força oculta muito particular (tendo em conta, até, a diminuta massa e as pequenas dimensões de que é detentor). Esta força oculta jaz, mais perceptível e concentradamente, em algumas das muitas espécies letais para o homem.
Como se consomem
Os cogumelos empregam-se sobretudo em guarnições, entremeios, sopas, guisados, molhos, pastéis, patés, e mesmo sós, principalmente grelhados. Algumas variedades podem comer-se cruas, como os boletos muito jovens, os amanitas dos Césares, os míscaros da terra, os cogumelos de leite, os orelhas-de-Judas, alguns rússulas, os triviais champignons, e outros mais… Outras pedem confecções rápidas, para não perderem o sabor ou deteriorarem a textura, como o Lactarius volemus, muito saboroso se assado rapida e brevemente, partido em pedaços. Outros ainda requerem longas cozeduras, a fim de perderem a sua toxicidade. É o caso dos excelentes morquelas (M. Esculenta, M.costata) que, além de se tornarem mais aromáticos depois de secos e re-hidratados, devem ser cozinhados pelo menos meia hora.
Alguns têm melhor aproveitamento em sopas: o Pholiota mutabilis, o Russula aerugínea, o Cantharellus tubaeformis, o Lactarius deliciosus; outros, em almôndegas (pela sua polpa dura): o Polyporus ovinus, ou o Sacordon imbricatus; outros, em conservas: como o Cantharellus cibarius; outros… em deliciosas migas alentejanas: o Lepiota procera.
Ao prepará-los, para evitar que escureçam, lavam-se em água avinagrada ou sumo de limão. Devem ser escovados e, muitos deles, pedem ser pelados. Podem guardar-se congelados, ou secar-se e conservar-se artesanalmente todo o ano, ensartando-os num fio ou cordel como se se tratasse de um colar, e suspendendo-os à sombra. Opcionalmente, e para uma mais rápida secagem, podem ir ao forno (se forem grandes, cortam-se previamente em tiras), guardando-se depois em sacos de pano e colocando-os em lugar seco exposto ao ar (é conveniente agitá-los com alguma frequência e, se tenderem a amolecer, devem secar-se novamente no forno).
Isabel Nunes Governo
Vice-Presidente do CLUC
Notas:
1 Um cogumelo típico desprende dez milhões de esporos por hora durante vários dias, que geralmente são disseminados pelo vento ou pelos insectos.
2 São, do mesmo modo, mímicos da natureza, copiando, com frequência, as formas mais tipicamente astralinas e representantes das emoções animais. É o caso do Phallus impudicus, do Gyromitra esculenta, do Boletus satanas, do Amanita phalloides, etc.
3 … o azoto, quando elevado à sua natureza essencial (depurado das suas qualidades elementares não sublimadas). Em termos ocultistas, este plasma tem muitas designações: é o dador de Vida; o fluido amniótico do útero da Grande Mãe; a Água da Vida ou Água de Luz; o Amrita, alimento, por excelência, dos deuses; o licor sagrado que, uma vez degustado, desperta na carne o espírito humano.
4 À semelhança, actualmente, do efeito de alguns bem conhecidos cogumelos alucinogéneos mexicanos, o Amanita caesarea bastardo (ou Amanita muscaria) utilizava-se na Sibéria, no séc. XVIII, em certas cerimónias religiosas, em que o povo tomava uma determinada dose deste amanita, que lhes proporcionava estados alterados de consciência com visões como as descritas (na época) e incluídas no livro de Font Quer, “El Discórides Renovado”: … ele regozija-se, solta-se e torna-se loquaz; ri e canta, apresentando todos os sintomas de uma feliz embriaguez. Mais tarde vacila, cai e dorme profundamente, como um embriagado (…) Quando se lhe pede que conte o que viu nos seus sonhos, diz que ‘foram sonhos irisados, com esplêndidos fogos de artifício; o deslumbrante espectáculo do firmamento flamejando; jogos de luzes cintilantes (…) e ele próprio se sentiu companheiro da rota das estrelas’”. O dano e a dependência física e moral que se seguem, são lastimosos.
Este amanita é utilizado em dinamizações homeopáticas para o tratamento de tiques nervosos e outros tremores involuntários mais graves, de várias etiologias, como na Coreia ou Dança de São Vito e na doença de Parkinson.
Bibliografia:
Plantas Medicinales – El Discórides Renovado, P. Font Quer, Editorial Labor, S.A., Calábria, Espanha,1987
As Plantas, Ed. Círculo de Leitores, Dez. 1986
“Revista de Vinhos”, Maio de 2002
Grande Enciclopédia Portuguesa-Brasileira
Fonte: http://biosofia.net/2005/03/21/o-mundo-fantastico-dos-cogumelos/

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