Indústria Farmacêutica: Como ela "cria" doenças para vender remédios.

É a mesma indústria que nos empurra agrotóxicos como "defensivos"
ou "remédios", e transgênicos como a santa salvação da lavoura...

Mais marketing que saúde

Livro conta como fabricantes de medicamentos "criam" doenças,
patrocinam pesquisas e fazem lobby milionário para vender cada vez
mais remédios aos consumidores americanos

Por Cristiane Correa

O suíço Daniel Vasella, presidente da Novartis, é um dos expoentes da
indústria farmacêutica mundial. Médico de formação, ele decidiu
abandonar o consultório em 1988, aos 35 anos de idade, para trabalhar
na área de vendas da fabricante de medicamentos americana Sandoz.
Vasella fez, então, uma carreira rápida e bem-sucedida e, em 1996,
assumiu o comando da Novartis, empresa resultante da fusão da Sandoz
com a Ciba-Geigy e uma das cinco maiores do mundo no setor. Anos
atrás, durante uma entrevista, Vasella foi perguntado sobre como sua
empresa conseguia criar os medicamentos de sucesso exigidos pelos
investidores. Sua resposta foi tão direta quanto surpreendente. "Você
cria um desejo", afirmou ele, como se estivesse falando de um produto
de consumo como qualquer outro.

Quem fez a pergunta a Vasella foi a jornalista Melody Petersen, ex-
repórter do The New York Times, especializada na cobertura da
indústria farmacêutica. Depois de vários anos nesse privilegiado
posto de observação, Melody decidiu revelar os meandros do bilionário
mercado de saúde. O resultado está no recém-lançado Our Daily Meds —
How the Pharmaceutical Companies Transformed Themselves into Slick
Marketing Machines and Hooked the Nation on Prescription Drugs (numa
tradução livre, "Os remédios nossos de cada dia: como as empresas
farmacêuticas se transformaram em máquinas de marketing escorregadias
e viciaram a nação em drogas prescritas"). Para Melody, os tempos
quase românticos em que a indústria farmacêutica era movida por
cientistas e médicos interessados em pesquisar a cura de doenças
graves ficaram inexoravelmente para trás. Agora, o setor —
fundamental para o bem-estar e para a longevidade — é dominado por
marqueteiros. "Vender remédios, e não inventá-los, tornou-se a
obsessão", diz ela.

As empresas parecem estar triunfando nessa nova missão. Em 2005, os
americanos gastaram 250 bilhões de dólares em remédios vendidos sob
prescrição médica — mais do que consumiram com fast food ou gasolina,
por exemplo. Se comparado a outros países, esse volume é ainda mais
impressionante. Os Estados Unidos gastam mais com remédios que Japão,
Alemanha, França, Itália, Espanha, Reino Unido, Austrália, Nova
Zelândia, Canadá, México, Brasil e Argentina — juntos. Em 2006, um
americano tomou, em média, 12 remédios prescritos por médicos — em
1994, a média foi oito. Entre a população idosa, o índice chega a 30
drogas anualmente. Graças a essa epidemia, entre 1995 e 2002, a
indústria farmacêutica foi o setor mais lucrativo da economia
americana. Em 2004, segundo dados da revista Fortune, a cada dólar
vendido pelas farmacêuticas, 16 centavos se transformavam em lucro —
ante a média de 5 centavos dos outros setores.

Para alcançar esse resultado fabuloso, é preciso investir muito
dinheiro. Uma das mais importantes frentes de batalha das companhias
farmacêuticas é travada em Washington. Entre 1998 e 2004, a indústria
farmacêutica gastou mais em lobby do que qualquer outro setor. Em
2004, o número de lobistas trabalhando para as farmacêuticas
instaladas nos Estados Unidos somava o dobro de representantes do
Congresso americano. Para a autora do livro, o efeito desse corpo-a-
corpo é imediato. Os Estados Unidos são o único país desenvolvido que
não controla o preço dos remédios vendidos sob prescrição. Além
disso, são um dos raros países no mundo que permitem propaganda de
remédios prescritos para consumidores (a Nova Zelândia é a outra
exceção).

Com o caminho livre, as empresas investem fortunas para propagandear
seus produtos. Segundo Melody, cerca de 25% do preço de um
medicamento prescrito corresponde a gastos com marketing — a soma é
maior que os investimentos em pesquisa e desenvolvimento, por
exemplo. Um dos maiores exemplos da força dessa máquina foi o
lançamento do Detrol, no final dos anos 90. Fabricado pela Pharmacia
(que viria a ser comprada pela Pfizer), o Detrol surgiu para curar
uma doença até então desconhecida dos americanos e batizada pelo
fabricante de "bexiga hiperativa". Uma das preocupações iniciais dos
executivos da Pharmacia foi que a doença não fosse confundida com a
já conhecida incontinência — um mal que, para muitos médicos, não
poderia ser tratado com medicamentos e que faria parte do processo
natural de envelhecimento. Para isso, o primeiro passo foi
arregimentar médicos. A Pharmacia organizou dois simpósios em
Londres, em 1997 e em 1999, e
bancou praticamente todas as despesas dos participantes. Alguns
doutores chegaram a entrar na folha de pagamentos da empresa, como
consultores ou palestrantes — prática amplamente utilizada pela
indústria. Nesses dois encontros, os médicos definiram os sintomas do
novo mal (um deles é ir ao banheiro mais de oito vezes em 24 horas).
Uma vez criada a doença, era hora de torná-la conhecida do grande
público. Além do boca-a-boca dos médicos, a Pharmacia contou com uma
campanha publicitária que incluiu anúncios em revistas de circulação
nacional e até a contratação da atriz Debbie Reynolds. A protagonista
do filme Dançando na Chuva fazia questão de declarar em entrevistas
que depois que começou a tomar o Detrol sua vida na estrada — ela
ainda fazia turnês pelo país — tinha ficado muito mais fácil. (Debbie
só não falava que alguns pacientes medicados com Detrol começaram a
ter alucinações...)

Usar a imagem de gente famosa para promover remédios prescritos,
aliás, tornou-se um dos expedientes mais usados pela indústria. A
Bristol-Myers Squibb, por exemplo, contratou o ciclista Lance
Armstrong. Vítima de câncer aos 25 anos de idade, ele venceu a doença
e sagrou-se o maior campeão de todos os tempos da Volta da França, a
prova ciclística mais tradicional do planeta. A Bristol tornou-se uma
das principais patrocinadoras da Live Strong, ONG que Armstrong
mantém para ajudar vítimas da doença — e o atleta começou a creditar
sua recuperação a um remédio do fabricante. Depois de uma das
vitórias do ciclista, a farmacêutica veiculou um anúncio em que
dizia: "Este milagre foi trazido a você pela Bristol-Myers Squibb". A
verdade, porém, não era exatamente essa. O tal milagre fora resultado
de uma pesquisa da Michigan State University, feita com dinheiro do
governo — e não uma descoberta da Bristol. À empresa farmacêutica
coube apenas licenciar o produto e colocá-lo à venda.

O efeito colateral dessa avalanche de medicamentos é perturbador.
Especialistas estimam que 100 000 americanos morram todos os anos por
problemas decorrentes do uso de remédios. Feitas as contas, são cerca
de 270 vítimas diariamente — o dobro das mortes causadas por
acidentes com automóveis. "Os remédios com prescrição matam mais
americanos que o diabetes ou o mal de Alzheimer", diz Melody. Para
piorar, mesmo entupidos de remédios, os americanos não estão
conseguindo aumentar sua expectativa de vida. Segundo a autora, em
1980 uma americana de 65 anos de idade tinha expectativa de vida
maior do que quase todas as mulheres nascidas em outros países do
mundo. Em 2002, numa avaliação da longevidade da população da qual
participaram 30 países, as senhoras americanas ficaram com uma
modesta 17a posição. A expectativa de vida dos homens nos Estados
Unidos também caiu — um americano de 65 anos corre hoje o risco de
morrer mais cedo
que um mexicano da mesma idade.

Embora o livro tenha um quê de teoria conspiratória (lembra o estilo
de País Fast Food, publicado pelo jornalista Eric Schlosser em 2001,
que tinha como alvo a indústria de alimentação rápida dos Estados
Unidos), parte da crítica feita por Melody começa a ser, de algum
modo, reconhecida. Em junho, algumas das maiores companhias
americanas, como Merck e Pfizer, concordaram em fazer uma espécie de
moratória e suspender por seis meses a veiculação de anúncios de
novos medicamentos vendidos sob prescrição médica. Além disso, elas
vão reavaliar a participação de médicos em suas propagandas. Pode ser
o começo de sua reabilitação.

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Alexandre Pimentel
Palestrante e Escritor

Fonte:Portal Exame | 24.07.2008

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