Dieta à prova de fogo

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SEM COCÇÃO: para os crudicistas, uma dieta equilibrada e saudável só é possível através do consumo de alimentos crus ou levemente aquecidos. Frutas, hortaliças e grãos, em abundância, leite, queijo e ovos integram seu cardápio diário (Foto: FOTOS: JOSÉ LEOMAR / REPRODUÇÃO)

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AS SALADAS estão entre as predileções dos crudicistas; para ser consumido ´in natura´, porém, legumes e verduras exigem cuidados especiais de higienização

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Modismo nos Estados Unidos, o crudivorismo preconiza uma alimentação crua, rica em hortaliças, frutos e sementes, sem concessões para o velho fogão


Para muita gente, a descoberta do fogo na aurora dos tempos é celebrada como uma das principais conquistas da humanidade. Demarcaria nosso ingresso em um estágio inicial de civilidade. Para este mesmo contingente, possivelmente, o fogão é visto como o principal aliado na cozinha e quase toda receita bem sucedida passa por suas chamas.

Certo? Não necessariamente. Um segmento cada vez maior considera que o eletrodoméstico não é tão indispensável quanto alardeiam seus entusiastas. Para este grupo, na verdade, nossa prática alimentar poderia mesmo prescindir dele. Os “radicais” da cozinha são adeptos de uma tendência chamada crudivorismo, hoje popular nos Estados Unidos e Europa, e em ascensão no Brasil.

Embora tenham dietas próximas, os crudívoros (ou crudicistas) não devem ser confundidos com os vegetarianos (que aceitam submeter seus alimentos à cocção). A semelhança reside na predileção de ambos por um regime rico em frutas, hortaliças, fibras e grãos. Em suas vertentes menos “extremistas”, as duas tendências também incluem leite, queijo e ovos no cardápio cotidiano.

Segundo Gláucia Posso Lima, professora do curso de Nutrição da Uece, o crudivorismo (também chamado de crudismo) foi preconizado pelo biólogo francês Pierre Valentín Marchesseau, mentor da ´Fundação Mundial de Naturopatia´. Os preceitos desta prática afirmam que, como o homem é um organismo vivo, deve igualmente consumir alimentos vivos, que proporcionem uma simbiose energética entre ambos.

´Dieta da pré-história´

A primeira reação do leigo ao ser apresentado ao crudivorismo é classificar a “dieta da pré-história” de sem graça e carente de sabor. Uma reação muitas vezes extensiva ao vegetarianismo e ilustrativa do desconhecimento dos “glutões pró-fogo”. Os entusiastas, no entanto, argumentam que comida crua não implica em alimentação sem gosto ou carente de qualidade.

Pelo menos em suas versões mais sofisticadas, a “raw-food” e a “life-food”, o crudivorismo mune seus seguidores de opções saborosas de alimentação. Nos Estados Unidos, e agora em São Paulo e no Rio de Janeiro, existem restaurantes direcionados unicamente para este segmento. Preparadas com esmero, as guloseimas enchem os olhos e silenciam os críticos. Na contra-ofensiva, os crudívoros ainda alegam que sua dieta é bem mais saudável do que o “menu da concorrência”.

A afirmação se pauta em dois argumentos: a ingestão do alimento ainda cru proporcionaria o aproveitamento integral de seus nutrientes, geralmente desperdiçados durante o cozimento. Por fim, defendem que o alimento in natura ou aquecido até, no máximo 48ºC, é de mais fácil digestão e absorção pelo organismo.

Gláucia Posso Lima reconhece algumas vantagens do crudivorismo, mas insiste no esclarecimento de alguns mitos vinculados à esta prática. “Independente do alimento ter sido consumido cru ou cozido, durante o processo digestivo os nutrientes contidos nos alimentos sofrem alteração pela ação das enzimas digestivas, pois nosso organismo necessita ´quebrar´ as grandes moléculas para utilizá-las”, explica a especialista. Gláucia também alerta que o cozimento não é sempre prejudicial à qualidade das refeições: “o calor altera a composição original de determinados nutrientes, porém, em muitas situações, ele favorece a digestibilidade do alimento”, diz a pesquisadora.

Dentre as principais vantagens do crudivorismo, Gláucia ressalta o consumo regular e elevado de frutas, hortaliças e sementes, itens nem sempre valorizado nas dietas convencionais e que proporcionam a ingestão diária de vitaminas, minerais e fibras. A pesquisadora, contudo, também aponta riscos. Para ela, muitos crudistas limitam sua dieta à uma variedade reduzida e monótona de alimentos, deixando de suprir o organismo com as taxas necessárias de calorias, proteínass e lipídeos. ”Há um risco significativo de má nutrição neste tipo de conduta alimentar. A nossa orientação é para que as pessoas adotem uma alimentação diversificada e balanceada, compatível com suas necessidades diárias”, complementa.

Nesta celeuma entre a adesão ou a recusa do fogão, Gláucia ressalta que alguns alimentos - sobretudo frutas e hortaliças - devem prioritariamente ser consumidos crus, desde que os cuidados de higienização (lavagem e desinfecção) tenham sido providenciados. Porém, os produtos de origem animal (o que inclui leite, queijo e ovos), bem como alguns grãos, devem ser cozidos para eliminar suas toxinas ou minimizar os riscos de contaminação microbiológica. “Tanto no caso dos grãos, como das carnes, a cocção permite uma melhor digestibilidade do aliemento”, destaca.

Higiene

A higienização dos alimentos é o procedimento mais importante na dieta dos crudívoros. Vegetais com casca (cenoura, chuchu, pepino, batata, abobrinha) devem ser lavados com escovas próprias e colocados de molho em solução com hipoclorito antes de serem cortados. Também é importante se informar sobre a procedência dos produtos: quanto menos agrotóxicos, melhor. E, sempre que possível, prefira as opções orgânicas.

Para comer cru e com qualidade, porém, ninguém pode ceder ao apelo da pressa. O crudivorismo demanda tempo e paciência. Comprometidos pela urgência, os pratos não terão sabor, nem serão atraentes. É preciso caprichar para fidelizar o paladar pouco afeito às frutas e hortaliças. A alimentação crua, portanto, não pode ser sinônimo de falta de qualidade. E aqui o crudivorismo contradiz a sabedoria popular: quem tem pressa, que coma alimentos cozidos ou fritos!

Variações do fenômeno crudicista


Adeptos do crudivorismo se orgulham de seu cardápio rico em “alimentos verdes e vivos”. Todavia, ingerir apenas frutas e hortaliças não assegura o bem-estar de cada um. Os especialistas sugerem a orientação de médico ou nutricionista para que sejam supridas as carências vitamínicas proporcionadas pela exclusão de determinados alimentos.

É preciso também não se acomodar à salada trivial do dia-a-dia e se aprofundar no preparo e manuseio de outros vegetais. Para o crudicista, a diversidade é o ingrediente principal do cardápio e o conceito do prato colorido é preceito importante. Também o visual ou a apresentação da receita conta ponto na hora de cativar os convivas – afinal, comer é uma experiência sensorial.

´Raw-food´

O primeiro surto crudívoro intenso teve início nos Estados Unidos, no estado da Califórnia (palco de quase todo modismo alimentar ianque). O fenômeno foi batizado de “raw-food”, literalmente “comida crua”, e inspirou a abertura de inúmeros restaurantes, que baniram de suas cozinhas o processo de cocção e os alimentos de origem animal. As receitas esbanjam criatividade: no cardápio, nada do “estigma do prato-salada” (algumas folhas sem graça, cobertas de sementes).

Um dos teóricos da novidade é Stephen Arlin, autor do livro “Natura´s First Law - The Raw-Food Diet” (“A Primeira Lei da Natureza - A Dieta da Comida Crua”, 1998). Pelas considerações do autor e dos discípulos, para ser crudicista, as receitas devem seguir normas rigorosas de preparo. Os pratos só podem ser conservados naturalmente (nada de geladeira!) e a água utilizada deve estar fria.

Recentemente, porém, o crudivorismo retornou à mídia, agora com nova roupagem. A “life-food”, ou comida viva, é um variação da “raw-food”, que estimula o consumo de brotos e sementes levemente germinadas, além de hortaliças e frutos orgânicos. Aqui, como nas vertentes anteriores, nada deve ser cozido. Os alimentos podem ser aquecidos ou desidratados, mas nunca em temperaturas superiores aos 40ºC. Os adeptos asseguram que a “life-food” proporciona longevidade e maior resistência às doenças.

Recentemente, a chef carioca Tiana Rodrigues e seu restaurante “Universo Orgânico” foram destaques em matéria da revista Época dedicada ao tema. O estabelecimento virou point entre os famosos e descolados da cidade, com seus biscoitos crus, sucos de clorofila, pães essênios e a famosa “empadinha viva” (feita de massa de macadâmia crua e desidratada). Para se aperfeiçoar na tendência, a chef Tiana hoje o freqüenta o “Biochip”, grupo da professora Ana Branco, vinculado ao Departamento de Artes e Design da Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ), que, dentre outras coisas, pesquisa as cores nos alimentos e estimula a prática do desenho com pigmentos de frutas e verduras cruas.

Manifesto político

A defesa do crudivorismo não se pauta apenas na alegação, por parte dos entusiastas, de que a espécie humana não se adaptou à descoberta do fogo (a exemplo dos animais, nosso corpo estaria apto apenas a consumir os alimentos tal como a natureza os fornece). A prática pressupõe também uma postura política: o respeito à ecologia – através da defesa de uma agricultura saudável – e a condenação das grandes corporações que revendem comidas congeladas/enlatadas.

Paralelamente, despontam os argumentos de cunho medicinal. Os crudívoros alegam maior vigor e disposição, e asseguram que a dieta crua expande a longevidade do indivíduo e minimizaria os riscos de câncer e de ataques cardíacos. A nutricionista Gláucia Posso Lima, no entanto, sugere cautela antes tais virtudes. “Devemos nos lembrar que os alimentos não são medicamentos. Uma alimentação saudável traz benéficos à saúde e favorece a recuperação do indivíduo, mas não podemos afirmar que ela cura ou age como medicamento”, destaca.

Laécio Ricardo
Repórter

Site: diariodonordeste.globo.com
Data de Consulta: Terça-feira, 22 de Janeiro de 2008
Hora: 10:49
Seção: Comer & Beber
Fonte: Diário do Nordeste
Autor: Laécio Ricardo
Fotos:
JOSÉ LEOMAR

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